O Princípio de ação e reação
“Toda falta cometida,
todo mal realizado, é uma dívida contraída
que deverá ser paga; se
não for em uma existência, sê-lo-á na
seguinte ou seguintes,
porque todas as existências são solidárias
entre si. Aquele que se
quita numa existência não terá necessidade
de pagar segunda vez’. Allan Kardec: O céu e
o inferno. Primeira
parte, cap. 7, n.º 9 (Código Penal da Vida
Futura).
Devemos ressaltar que
sem [...] o livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem
mérito em praticar o bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no mundo, a
censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade. Nenhuma desculpa
poderá, portanto, o homem buscar, para os seus delitos, na sua organização
física, sem abdicar da razão e da sua condição de ser humano, para se equiparar
ao bruto. O homem possui o suficiente livre-arbítrio para tomar decisões, e, se
[...] ele cede a uma sugestão estranha e má, em nada lhe diminui a
responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, o que evidentemente
lhe é muito mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza. Assim, de
acordo com a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode
sempre cerrar ouvidos à voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal,
como pode cerrá-los à voz material daquele que lhe fale ostensivamente. Livro
dos espíritos questão 872.O rio transbordava.
Aqui e ali, na crista espumosa da corrente pesada, boiavam animais mortos ou deslizavam toras e ramarias. Vazantes em torno davam expansão ao crescente lençol de massa barrenta.
Famílias inteiras abandonavam casebres, sob a chuva, carregando aves espantadiças, quando não estivessem puxando algum cavalo magro. Quirino, o jovem barqueiro, que vinte e seis anos de sol no sertão haviam enrijado de todo, ruminava plano sinistro.
Não longe, em casinhola fortificada, vivia Licurgo, conhecido usuário das redondezas. Todos o sabiam proprietário de pequena fortuna a que montava guarda vigilante. Ninguém, no entanto, poderia avaliar-lhe a extensão, porque, sozinho envelhecera e sozinho atendia às próprias necessidades.
- “O velho – dizia Quirino de si para consigo – será atingido na certa. É a primeira vez que surge uma cheia como esta. Agarrado aos próprios haveres, será levado de roldão... E se as águas devem acabar com tudo, porque não me beneficiar? O homem já passou dos setenta.... Morrerá a qualquer hora. Se não for hoje, será amanhã, depois de amanhã... E o dinheiro guardado? Não poderia servir para mim, que estou moço e com pleno direito ao futuro?” O aguaceiro caía sempre, na tarde fria. O rapaz, hesitante, bateu à porta da choupana molhada.
- “Seu” Licurgo! “Seu” Licurgo! ... E, ante o rosto assombrado do velhinho que assomara à janela, informou:
- Se o senhor não quer morrer, não demore. Mais um pouco de tempo e as águas chegarão. Todos os vizinhos já se foram... Não, não... – resmungou o proprietário -, moro aqui há muitos anos. Tenho confiança em Deus e no rio... Não sairei.
- Venho fazer-lhe um favor...
- Agradeço, mas não sairei.
Tomado de criminoso impulso, o barqueiro empurrou a porta mal fechada e avançou sobre o velho, que procurou em vão reagir.
- Não me mate assassino!
A voz rouquenha, contudo, silenciou nos dedos robustos do jovem.
Quirino largou para um lado o corpo amolecido, como traste inútil, arrebatou pequeno molho de chaves do grande cinto e, em seguida, varejou todos os escaninhos...
Gavetas abertas mostravam cédulas mofadas, moedas antigas e diamantes, sobretudo diamantes. Enceguecido de ambição, o moço recolhe quanto acha. A noite chuvosa descerra completa...
Quirino toma os despojos da vítima num cobertor e, em minutos breves, o cadáver mergulha no rio. Logo após, volta à casa despovoada, recompõe o ambiente e afasta-se, enfim, carregando a fortuna.
É o Espírito de Licurgo, que acompanha o tesouro.
Pressionado pelo remorso, o barqueiro abandona a região e instala-se em grande cidade, com pequena casa comercial, e casa-se, procurando esquecer o próprio arrependimento, mas recebe o velho Licurgo, reencarnado, por seu primeiro filho...
Explanação
A Justiça e Bondade Divinas estão evidentes nas manifestações da lei de causa e efeito. Desde [...] que admita a existência de Deus, ninguém o pode conceber sem o infinito das perfeições. Ele necessariamente tem todo o poder, toda a justiça, toda a bondade, sem o que não seria Deus. Se é soberanamente bom e justo, não pode agir caprichosamente, nem com parcialidade. Logo, as vicissitudes da vida derivam de uma causa e, pois, que Deus é justo, justa há de ser essa causa. Isso o de que cada um deve bem compenetrar-se.5 Sendo infinita a justiça de Deus, o bem e o mal são rigorosamente considerados, não havendo uma só ação, um só pensamento mau que não tenha consequências fatais, como não há uma única ação meritória, um só bom movimento da alma que se perca, mesmo para os mais perversos, por isso que constituem tais ações um começo de progresso.1 Se admitimos a Justiça de Deus, não podemos deixar de admitir que esse efeito tem uma causa; e se esta causa não se encontra na vida presente, deve achar-se antes desta, porque em todas as coisas a causa deve preceder ao efeito; há, pois, necessidade de a alma já ter vivido, para que possa merecer uma expiação.10 A expiação é, assim, a manifestação da lei de causa e efeito em decorrência de faltas anteriormente cometidas. Dessa forma, toda [...] falta cometida, todo mal realizado é uma dívida contraída que deverá ser paga.2 O Espírito sofre, quer no mundo corporal, quer no espiritual, a consequência das suas imperfeições. As misérias, as vicissitudes padecidas na vida corpórea, são oriundas das nossas imperfeições.3
O fato de haver uma relação de causalidade nos problemas, doenças e dores que enfrentamos — consequência de nossas ações — não significa que as causas estejam necessariamente em vidas anteriores. Muitos males que nos afligem têm origem em nosso comportamento na vida atual. E há enfermidades, limitações e deficiências físicas que são decorrentes de mau uso, isto é, usamos mal o corpo e lhe provocamos estragos. [...] Isso acontece particularmente com vícios e indisciplinas que geram graves problemas de saúde.13 Por esta razão, ensinam os Espíritos Superiores: De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida. Remontando-se à origem dos males terrestres, reconhecer-se-á que muitos são consequência natural do caráter e do proceder dos que os suportam.6
É na vida corpórea que o Espírito repara o mal de anteriores existências, pondo em prática resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam as misérias e vicissitudes da vida mundana que, à primeira vista, parecem não ter razão de ser. Justa são elas, no entanto, como espólio do passado.4 A quem, então, há de o homem responsabilizar por todas essas aflições, senão a si mesmo? O homem, pois, em grande número de casos, é o causador de seus próprios infortúnios; mas, em vez de reconhecê-lo, acha mais simples, menos humilhante para sua vaidade acusar a sorte, a Providência, a má fortuna, a má estrela, ao passo que a má estrela é apenas a sua incúria.6
O Entendimento [...] da lei de Causa e Efeito nos permite compreender, em plenitude, a justiça perfeita de Deus. Sentimos que tudo tem uma razão de ser, que nada acontece por acaso. Males e sofrimentos variados que enfrentamos estão relacionados com o nosso passado [recente ou remoto]. É a conta a pagar. Mas há outro aspecto, muito importante: Se a dor é a moeda pela qual resgatamos o passado, Deus nos oferece abençoada alternativa – o Bem. Todo esforço em favor do próximo amortiza nossos débitos, tornando mais suave o resgate.
2.º Caso: Dívida agravada
O Espírito André Luiz nos relata no capítulo 12, da obra Ação e Reação, páginas 215 a 219, a manifestação da lei de causa e efeito numa situação muito comum na atualidade.
O Assistente [Silas] interrompeu a operação socorrista e falou-nos bondoso:

— Marina veio de nossa Mansão para auxiliar a Jorge e Zilda, dos quais se fizera devedora. No século passado, interpôs-se entre os dois, quando recém-casados, impelindo-os a deploráveis leviandades, que lhes valeram angustiosa demência no Plano Espiritual. Depois de longos padecimentos e desajustes, permitiu o Senhor que muitos amigos intercedessem junto aos Poderes Superiores, para que se lhes recompusesse o destino, e os três renasceram no mesmo quadro social, para o trabalho regenerativo. Marina, a primogênita do lar de nossa irmã Luísa, recebeu a incumbência de tutelar a irmãzinha menor, que assim se desenvolveu ao calor de seu fraternal carinho, mas, quando moças feitas, há alguns anos, eis que, segundo o programa de serviço traçado antes da reencarnação, a jovem Zilda reencontra Jorge e reatam, instintivamente, os elos afetivos do pretérito. Amam-se com fervor e confiam-se ao noivado. Marina, porém, longe de corresponder às promessas esposadas no Mundo Maior, pelas quais lhe cabia amar o mesmo homem, no silêncio da renúncia construtiva, amparando a irmãzinha, outrora repudiada esposa, nas lutas purificadoras que a atualidade lhe ofertaria, passou a maquinar projetos inconfessáveis, tomada de intensa paixão. Completamente cega e surda aos avisos da sua consciência, começou a envolver o noivo da irmã em larga teia de seduções e, atraindo para o seu escuso objetivo o apoio de entidades caprichosas e enfermiças, por intermédio de doentios desejos, passou a hipnotizar o moço, espontaneamente, com o auxílio dos vampiros desencarnados, cuja companhia aliciara sem perceber...
E Jorge, inconscientemente dominado, transferiu-se do amor por Zilda à simpatia por Marina, observando que a nova afetividade lhe crescia assustadoramente no íntimo, sem que ele mesmo pudesse controlar lhe a expansão... Decorridos breves meses, dedicavam-se ambos a encontros ocultos, nos quais se comprometeram um com o outro na maior intimidade... Zilda notou a modificação do rapaz, mas procurava desculpar-lhe a indiferença à conta de cansaço no trabalho e dificuldades na vida familiar. Todavia, em faltando apenas duas semanas para a realização do consórcio, surpreende-se a pobrezinha com a inesperada e aflitiva confissão... Jorge expõe-lhe a chaga que lhe excrucia o mundo interior... Não lhe nega admiração e carinho, mas desde muito reconhece que somente Marina deve ser-lhe a companheira no lar. A noiva preterida sufoca o pavoroso desapontamento que a subjuga e, aparentemente, não se revolta. Mas, introvertida e desesperada, consegue na mesma noite do entendimento a dose de formicida com que põe termo à existência física. Alucinada de dor, Zilda, desencarnada, foi recolhida por nossa irmã Luísa, que já se achava antes dela em nosso mundo, admitida na Mansão pelos méritos maternais. A genitora desditosa rogou o amparo de nossos Maiores. Na posição de mãe, apiedava-se de ambas as jovens, de vez que a filha traidora, aos seus olhos, era mais infeliz que a filha escarnecida, embora esta última houvesse adquirido o grave débito dos suicidas, em seu caso atenuado pela alienação mental em que a moça se vira, sentenciada sem razão a inqualificável abandono... Examinando o assunto, carinhosamente, pelo Ministro Sânzio [...], determinou ele que Marina fosse considerada devedora em conta agravada por ela mesma. E, logo após a decisão, providenciou a fim de que Zilda fosse recambiada ao lar para receber aí os cuidados merecidos. Marina falhara na prova de renúncia em favor da irmã que lhe era credora generosa, mas condenara-se ao sacrifício pela mesma irmãzinha, agora imposta pelo aresto da Lei ao seu convívio, na situação de filha terrivelmente sofredora e imensamente amada. Foi assim que Jorge e Marina, livres, casaram-se, recolhendo da Terra a comunhão afetiva pela qual suspiravam; entretanto, dois anos após o enlace, receberam Zilda em rendado berço, como filhinha estremecida. Mas... desde os primeiros meses do rebento adorado, identificara-lhe a dolorosa prova. Zilda, hoje chamada Nilda, nasceu surda-muda e mentalmente retardada, em consequência do trauma períspirito experimentado na morte por envenenamento voluntário. Inconsciente e atormentada nos refolhos do ser pelas recordações asfixiantes do passado recente, chora quase que dia e noite...Quanto mais sofre, porém, mais ampla ternura recolhe dos pais que a amam com extremados desvelos de compaixão e carinho... Silenciou o Assistente [...].Achávamo-nos eu e Hilário, assombrados e comovidos. O problema era doloroso do ponto de vista humano, contudo encerrava precioso ensinamento da Justiça Divina.
3.º caso: Dívida e resgate
No livro Contos e Apólogos, capítulo 23, páginas 101 a 104, relata-nos Irmão X emocionante manifestação da lei de causa e efeito, ocorrida entre os séculos dezenove e vinte. Na antevéspera do Natal de 1856, Dona Maria Augusta Correia da Silva, senhora de extensos haveres, retornava à fazenda, às margens do Paraíba, após quase um ano de passeio repousante na Corte. Acompanhada de numerosos amigos que lhe desfrutariam a festiva hospitalidade, a orgulhosa matrona, na tarde chuvosa e escura, recebia os sessenta e dois cativos de sua casa que, sorridentes e humildes, lhe pediam a bênção. Na sala grande, nobremente assentada em velha poltrona sobre largo estrado que lhe permitisse mais ampIo golpe de vista, fazia um gesto de complacência, à distância, para cada servidor que exclamava de joelhos: — Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo, «sinhá»!
— Louvado seja! – acentuava Dona Maria com terrível severidade a transparecer- lhe da voz.
Velhinhos de cabeça branca, homens rudes do campo, mulheres desfiguradas pelo sofrimento, moços e crianças desfilavam nas boas-vindas. Contudo, em ângulo recuado, pobre moça mestiça, sustentando nos braços duas crianças recém-nascidas, sob a feroz atenção de capataz desalmado, esperava a sua vez. Foi a última que se aproximou para a saudação. A fazendeira soberana levantou-se, empertigada, chamou para junto de si o Cérbero humano que seguia de perto a jovem escrava, e, antes que a pobrezinha lhe dirigisse a palavra, falou-lhe, duramente:
— Matilde, guarde as crias na senzala e encontre-me no terreiro. Precisamos conversar.
A interpelada obedeceu sem hesitação. E afastando-se do recinto, na direção do quintal, Dona Maria Augusta e o assessor, de azorrague em punho, cochichavam entre si. No grande pátio que a noite agora amortalhava em sombra espessa, a mãezinha infortunada veio atender à ordenação recebida.
— Acompanhe-nos! - determinou Dona Maria, austeramente.
Guiadas pelo rude capitão do mato, as duas mulheres abordaram a margem do rio transbordante. Nuvens formidandas coavam no céu os medonhos rugidos de trovões remotos... Derramava-se o Paraíba, em soberbo espetáculo de grandeza, dominando o vale extenso. Dona Maria pousou o olhar coruscante na mestiça humilhada e falou:.
— Diga de quem são essas duas «crias» nascidas em minha ausência!
— De «Nhô» Zico, «sinhá»!
— Miserável! — bradou a proprietária poderosa — meu filho não me daria semelhante desgosto. Negue essa infâmia!
— Não posso! Não posso!
A patroa encolerizada relanceou o olhar pela paisagem deserta e bramiu, rouquenha:
— Nunca mais verá você essas crianças que odeio... — Ah! «sinhá» – soluçou
a infeliz –, não me separe dos meninos! Não me separe dos meninos! Pelo amor de Deus!...
— Não quero você mais aqui e essas crias serão entregues à venda.
— Não me expulse, «sinhá»! Não me expulse!
— Desavergonhada, de hoje em diante você é livre! E depois de expressivo gesto para o companheiro, acentuou, irônica:
— Livre, poderá você trabalhar noutra parte para comprar esses rebentos malditos.
Matilde sorriu, em meio do pranto copioso, e exclamou:
— Ajude-me, «sinhá»... Se é assim, darei meu sangue para reaver meus filhinhos...
Dona Maria Augusta indicou-lhe o Paraíba enorme e sentenciou:
— Você está livre, mas fuja de minha presença. Atravesse o rio e desapareça!
— «Sinhá», assim não! Tenha piedade de sua cativa! Ai, Jesus! Não posso morrer...
Mas, a um sinal da patroa, o capataz envilecido estalou o chicote no dorso da jovem, que oscilou, indefesa, caindo na corrente profunda.
— Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me, Nosso Senhor! – gritou a mísera, debatendo-se nas águas.
Todavia, daí a instantes, apenas um cadáver de mulher descia rio abaixo, ante o silêncio da noite...
Cem anos passaram...
Na antevéspera do Natal de 1956, Dona Maria Augusta Correia da Silva, reencarnada, estava na cidade de Passa-Quatro, no sul de Minas Gerais. Mostrava-se noutro corpo de carne, como quem mudara de vestimenta, mas era ela mesma, com a diferença de que, ao invés de rica latifundiária, era agora apagada mulher, em rigorosa luta para ajudar ao marido na defesa do pão. Sofria no lar as privações dos escravos de outro tempo. Era mãe, padecendo aflições e sonhos... Meditava nos filhinhos, ante a expectação do Natal, quando a chuva, sobre o telhado, se fez mais intensa. Horrível temporal desabava na região. Alagara-se tudo em derredor da casa singela. A pobre senhora, vendo a água invadir lhe o reduto doméstico, avançou para fora, seguida do esposo e das crianças. . .
As águas, porém, subiam sempre em turbilhão envolvente e destruidor, arrastando o que se lhes opusesse à passagem. Diante da ex-fazendeira, erguia-se um rio inesperado e imenso e, em dado instante, esmagada de dor, ante a violenta separação do companheiro e dos pequenino, tombou na caudal, gritando em desespero:
— Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me, Nosso Senhor!
Todavia, decorridos alguns momentos, apenas um cadáver de mulher descia corrente abaixo, ante o silêncio da noite...
A antiga situante do Vale do Paraíba resgatou o débito que contraíra perante a Lei.
Continuação explanação
Em Mateus, capítulo 26, versículos 47-52, encontramos referências ao princípio de ação e reação: “E estando ele ainda a falar, eis que veio Judas, um dos doze, e com ele grande multidão com espadas e varapaus, vinda da parte dos principais sacerdotes e dos anciãos do povo. Ora, o que o traía lhes havia dado um sinal, dizendo: Aquele que eu beijar, esse é: prendei-o. E logo, aproximando-se de Jesus, disse: Salve, Rabi. E o beijou. Jesus, porém, lhe disse: Amigo, a que vieste?
Nisto, aproximando-se eles, lançaram mão de Jesus, e o prenderam. E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, puxou da espada e, ferindo o servo do sumo sacerdote, cortou-lhe uma orelha. Então Jesus lhe disse: Mete a tua espada no seu lugar; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão.” Lucas informa que, em seguida, Jesus tocou a orelha do homem e a curou. O apóstolo Paulo diz algo semelhante na Epístola aos Gálatas (capítulo 6, versículo 7): “Não vos enganeis; Deus não se deixa escarnecer; pois tudo o que o homem semear, isso também ceifará.”
Vemos, assim, que há [...] uma relação de causalidade entre o mal que praticamos e o mal que sofremos depois. O prejuízo que impomos ao semelhante é débito em nossa conta, na contabilidade divina.11 Entretanto, é oportuno lembrar que não devemos confundir a lei de causa e efeito com a pena de Talião ou com a legislação de Moisés, que preconizam “dente por dente” e “olho por olho”. A lei de causa e efeito, segundo o entendimento espírita, refere-se tanto à manifestação da justiça, bondade e misericórdia divinas quanto à necessidade evolutiva do ser humano de reparar erros cometidos, decorrentes das inflações cometidas contra a Lei de Liberdade. Quando [...] Jesus afirma que quem usa a espada com a espada perecerá, ou Paulo proclama que tudo o que semearmos colheremos, reportam-se ao fato de que receberemos de volta todo o mal que praticarmos, em sofrimentos correspondentes, não necessariamente idênticos, o que equivaleria à sua perpetuação. [...] As sanções divinas não dependem do concurso humano. Todo prejuízo causado ao semelhante provocará desajustes em nosso corpo espiritual, o períspirito, os quais, nesta mesma existência ou em existências futuras, se manifestarão na forma de males redentores.12
3 - O FERREIRO INTRANSIGENTE
Comentávamos o problema da compaixão, quando se abeirou de nós antigo orientador e narrou, bem humorado:
¯ Conheci um caso interessante na Idade Média.
Em que pequenina aldeia do Velho Mundo que os séculos já transformaram, jovem ferreiro apaixonou-se pelo rigor da justiça.
Integrando certa facção política, considerava todas as pessoas que lhe não esposassem os pontos de vista por inimigos a combater.
Atrabiliário e sectarista, imaginava os mais difíceis processos de perseguição aos
adversários. A tolerância representava para ele grave delito. Se alguém não rezasse por sua cartilha, ficava assinalado a ponto escuro. Disposto a contendas, embora a posição humilde que desfrutava, sabia complicar a situação dos desafetos, urdindo intrigas e ciladas contra eles.
Assim é que, certa feita, procurou o juiz que regia a comuna com benevolência e equidade e propôs-lhe a reconstrução do cárcere. A enxovia desmoronava-se.
Qualquer malfeitor provocava facilmente a evasão. As grades frágeis cediam ao assalto de qualquer um. Impossível o trabalho da detenção. Era necessário sustar o insulto à polícia.
Oferecia-se, desse modo, para sanar o problema. Daria novo aspecto ao cubículo. Prisão que fosse prisão.
O magistrado, velho experiente e bondoso, observou:
¯ Meu filho, a justiça deve ser exercida com amor, para que se não converta em
crueldade, porque lá vem um dia em que precisamos ser justiçados por nossa vez.
O moço, porém, insistiu. A cadeia menosprezada não merecia respeito.
Tanto reclamou que atingiu o objetivo a que se proponha.
Recebendo a concessão para reformar o cárcere, esmerou-se quanto pôde. Deu nova feição às grades. Criou um sistema de cadeados, pelo qual era impossível a escapatória. E no centro do acanhado recinto levantou pesada coluna de ferro, com algemas laboriosamente trabalhadas, impedindo a movimentação de quem fosse jungido a semelhante pelourinho. A ideia foi bem-sucedida. O serviço revelou-se tão eficiente que o jovem artífice foi procurado por autoridades de outros recantos e larga prosperidade abriu-lhe as portas. A novidade ofereceu-lhe fama e fortuna.
Durante vinte anos, coadjuvado por operários diversos, o nosso ambicioso amigo fabricou prisões para numerosas cidades do seu tempo. Senhor de vasto patrimônio material, transferiu residência do vilarejo provinciano para grande metrópole e, certa noite supondo defender-se, cometeu leve falta que inimigos gratuitos se incumbiram de solenizar.
O antigo ferreiro foi preso, de imediato. Internado, mentalizou a ajuda de companheiros que o auxiliassem na fuga, mas, assombrado, reconheceu, pela marca dos ferros, que fora trancafiado num cárcere de sua própria fabricação, sofrendo rigorosa pena que, começando por acabrunhá-lo, acabou por infligir lhe a morte.
Terminada a história rápida, fixou-nos de maneira expressiva e rematou:
¯ Somente a compaixão pode salvar-nos, soerguendo-nos do abismo de nossas próprias faltas. Qualquer punição extremada que receitarmos para os outros será como a prisão do ferreiro intransigente. Os laços que armarmos contra o próximo serão inevitável flagelo para nós mesmos.
Logo após, sem dar-nos tempo para qualquer indagação, sorriu com serenidade e seguiu adiante.